O Jogo de Xadrez: Uma Colagem



«Têm a certeza de que, então, o homem também deixará de enganar-se de propósito e, por assim dizer, não desejará naturalmente desunir a sua vontade dos seus interesses normais. Mais ainda: então, dizem os senhores, a própria ciência ensinará ao homem (embora, a meu ver, isso seja um luxo) que, na realidade, ele não tem vontade nem capricho, nem os teve nunca, e mais não é do que uma espécie de tecla de piano ou de pista de órgão; e que, além disso, há no mundo leis da natureza, logo, tudo o que o homem faz não é feito por sua vontade, mas espontaneamente, pelas leis da natureza. Por conseguinte, basta descobrir essas leis da natureza e o homem nem responsável será pelos seus procedimentos e ser-lhe-á muito fácil viver. Todos os procedimentos humanos serão então estimados de acordo com essas leis, matematicamente, como uma tábua de logaritmos, até 108 mil, e incluídos num almanaque; ou, ainda melhor, aparecerão umas benevolentes edições, à maneira dos nosso atuais dicionário enciclopédicos, em que tudo será tão bem calculado e enunciado, que deixará de haver mais procedimentos e mais aventuras no mundo.

 Então – são mais os senhores a falar – estabelecer-se-ão novas relações económicas, já prontas e também calculadas com precisão matemática, e desaparecerá num instante, logicamente, todo o género de perguntas, porque já existirá todo o género de respostas. Então, será construído o palácio de cristal. Então… numa palavra, visitar-nos-á o Pássaro Azul. Claro que não se podem dar garantias (isso digo eu) de que não será tudo horrivelmente aborrecido (porque, o que haverá a fazer se já tudo foi calculado pela tábua?); em compensação, tudo será sensato ao máximo. Claro, é por culpa do aborrecimento que as fantasias aparecem!»

-Dostoiévski, F., Cadernos do Subterrâneo





Leon Ferrari, Crossing, 1982




John Baldessari, Concerning Diachronic, Synchronic Time: Above, On, Under (With Mermaid), 1976


«Aos pés do trono do Grão Kan, estendia-se um pavimento de azulejos. Marco Polo, informador mudo, aí estendia um mostruário das mercadorias trazidas das suas viagens aos confins do império: um elmo, uma concha, uma noz de coco, um leque. Dispondo numa certa ordem os objectos sobre os azulejos brancos e negros e deslocando-os com movimento estudados, o embaixador tentava representar aos olhos do monarca as vicissitudes da sua viagem, o estado do império, as prerrogativas das remotas capitais.

 Kublai era um atento jogador de xadrez; seguindo os gestos de Marco observava que certas peças implicavam ou excluíam a vizinhança de outras peças e se deslocavam de acordo com certas linhas. Descurando a variedade de formas dos objectos, definia o seu modo de disposição uns em relação aos outros no pavimento de azulejos. Pensou: “Se todas as cidades forem como um jogo de xadrez, no dia em que eu chegar a conhecer as suas regras possuirei finalmente o meu império, mesmo que nunca consiga conhecer todas as cidade que contém”.

 No fundo, era inútil que Marco para lhe falar das suas cidades recorresse a tantas quinquilharias: bastava um tabuleiro de xadrez com as suas peças de formas classificáveis com exatidão. A cada peça podia de cada vez atribuir-se um significado apropriado: um cavalo podia representar tanto um verdadeiro cavalo como um cortejo de carruagens, um exército em marcha, um monumento equestre; e uma rainha podia ser uma dama assomando a uma varanda, uma fonte, uma igreja de cúpula cuspidada, uma romãzeira.

 Voltando da sua última missão Marco Polo foi dar com o Kan à sua espera sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um gesto convidou-o a sentar-se à sua frente e a descrever-lhe só com o auxílio das peças de xadrez as cidades que tinha visitado. O veneziano não desanimou. As peças do xadrez do Grão Kan eram de marfim polido: dispondo no tabuleiro torres dominantes e cavalos desconfiados, adensando enxames de peões, traçando alamedas direitas ou oblíquas como o andar majestoso da rainha, Marco recriava as perspetivas e os espaços de cidade brancas e negras das noites de luar.

 Ao contemplar estas paisagens essenciais, Kublai refletia sobre a ordem invisível que governa as cidades, sobre as regras a que corresponde o seu surgir e tomar forma e prosperar e adaptar-se às estações e murchar e arruinar-se. Por vezes parecia-lhe que estava prestes a descobrir um sistema coerente e harmonioso que estava submetido às infinitas deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo aguentava a comparação com o do jogo de xadrez. Talvez, em vez de matar a cabeça a evocar com o magro auxílio das peças de marfim visões apesar de tudo destinadas ao esquecimento, bastava jogar uma partida de acordo com as regras, e contemplar cada um dos sucessivos estados do tabuleiro como uma das inúmeras formas que o sistema das formas reúne e destrói.

 Agora Kublai Kan já não precisava de mandar Marco Polo em longínquas expedições: retinha-o a jogar intermináveis partidas de xadrez. O conhecimento do império estava escondido do desenho traçado pelo saltos angulosos do cavalo, pelas travessias diagonais que se abrem às incursões do bispo pelo passo arrastado e circunspecto do rei e do humilde peão, pelas alternativas inexoráveis de cada partida.

 O Grão Kan tentava concentra-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. O fim de todas as partidas é um perder ou ganhar: mas o quê? Qual era a verdadeira aposta? Ao xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pela mão do vencedor, fica um quadrado preto ou branco. À força de desmaterializar as suas conquistas para as reduzir à essência, Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada: o nada…»

- Calvino, I., As Cidades Invisíveis




Helena Almeida, Estudo para Dois Espaços, 1977


«Muito teremos ganho para a ciência estética se houvermos chegado, não apenas à perspiciência lógica, mas à certeza imediata da intuição segundo a qual a evolução da arte se encontra ligada à duplicidade do elemento apolíneo e do elemento dionisíaco: de modo semelhante àquele como a geração depende da dualidade dos sexos, em luta permanente e reconciliação apenas periódica. Fomos buscar esses nomes aos Gregos, que tornam inteligíveis as doutrinas misteriosas e profundas da sua visão artística, fazendo-o não tanto por meio de conceitos mas através das figuras penetrantemente claras do seu mundo de deuses. A ambas as divindades artísticas, Apolo e Dioniso, está associada a nossa asserção de que existe no mundo grego uma monstruosa oposição, no que diz respeito à origem e aos objectivos, entre a arte do escultor, a apolínea, e a arte da música isenta de imagens, como sendo a de Dioniso: ambos os impulsos, tão distintos, caminham lado a lado, na maioria dos casos em divergência aberta um com o outro e provocando-se para criar novos nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição que a palavra comum “arte” só aparentemente supera; até que finalmente, através de um miraculoso acto metafísico da “vontade” helénica, eles surgem acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte, tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática.»

-Nietzche, F., O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo



Fernando Calhau, Mar I e Mar II, 1976

“The Trial of the Chicago 7”, resistência e incorporação

  Um dos mecanismos de auto manutenção do capitalismo tardio é a incorporação cultural . Esta consiste na capacidade da ideologia predominan...