«Têm a
certeza de que, então, o homem também deixará de enganar-se de propósito e, por
assim dizer, não desejará naturalmente desunir a sua vontade dos seus
interesses normais. Mais ainda: então, dizem os senhores, a própria ciência
ensinará ao homem (embora, a meu ver, isso seja um luxo) que, na realidade, ele
não tem vontade nem capricho, nem os teve nunca, e mais não é do que uma
espécie de tecla de piano ou de pista de órgão; e que, além disso, há no mundo
leis da natureza, logo, tudo o que o homem faz não é feito por sua vontade, mas
espontaneamente, pelas leis da natureza. Por conseguinte, basta descobrir essas
leis da natureza e o homem nem responsável será pelos seus procedimentos e
ser-lhe-á muito fácil viver. Todos os procedimentos humanos serão então
estimados de acordo com essas leis, matematicamente, como uma tábua de
logaritmos, até 108 mil, e incluídos num almanaque; ou, ainda melhor,
aparecerão umas benevolentes edições, à maneira dos nosso atuais dicionário
enciclopédicos, em que tudo será tão bem calculado e enunciado, que deixará de
haver mais procedimentos e mais aventuras no mundo.
Então – são mais os senhores a falar –
estabelecer-se-ão novas relações económicas, já prontas e também calculadas com
precisão matemática, e desaparecerá num instante, logicamente, todo o género de
perguntas, porque já existirá todo o género de respostas. Então, será
construído o palácio de cristal. Então… numa palavra, visitar-nos-á o Pássaro
Azul. Claro que não se podem dar garantias (isso digo eu) de que não será tudo
horrivelmente aborrecido (porque, o que haverá a fazer se já tudo foi calculado
pela tábua?); em compensação, tudo será sensato ao máximo. Claro, é por culpa
do aborrecimento que as fantasias aparecem!»
-Dostoiévski, F., Cadernos do Subterrâneo
«Aos pés
do trono do Grão Kan, estendia-se um pavimento de azulejos. Marco Polo,
informador mudo, aí estendia um mostruário das mercadorias trazidas das suas
viagens aos confins do império: um elmo, uma concha, uma noz de coco, um leque.
Dispondo numa certa ordem os objectos sobre os azulejos brancos e negros e
deslocando-os com movimento estudados, o embaixador tentava representar aos
olhos do monarca as vicissitudes da sua viagem, o estado do império, as
prerrogativas das remotas capitais.
Kublai era um atento jogador de xadrez;
seguindo os gestos de Marco observava que certas peças implicavam ou excluíam a
vizinhança de outras peças e se deslocavam de acordo com certas linhas.
Descurando a variedade de formas dos objectos, definia o seu modo de disposição
uns em relação aos outros no pavimento de azulejos. Pensou: “Se todas as
cidades forem como um jogo de xadrez, no dia em que eu chegar a conhecer as
suas regras possuirei finalmente o meu império, mesmo que nunca consiga
conhecer todas as cidade que contém”.
No fundo, era inútil que Marco para lhe falar
das suas cidades recorresse a tantas quinquilharias: bastava um tabuleiro de
xadrez com as suas peças de formas classificáveis com exatidão. A cada peça
podia de cada vez atribuir-se um significado apropriado: um cavalo podia
representar tanto um verdadeiro cavalo como um cortejo de carruagens, um
exército em marcha, um monumento equestre; e uma rainha podia ser uma dama
assomando a uma varanda, uma fonte, uma igreja de cúpula cuspidada, uma
romãzeira.
Voltando da sua última missão Marco Polo foi
dar com o Kan à sua espera sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um
gesto convidou-o a sentar-se à sua frente e a descrever-lhe só com o auxílio
das peças de xadrez as cidades que tinha visitado. O veneziano não desanimou.
As peças do xadrez do Grão Kan eram de marfim polido: dispondo no tabuleiro torres
dominantes e cavalos desconfiados, adensando enxames de peões, traçando alamedas
direitas ou oblíquas como o andar majestoso da rainha, Marco recriava as
perspetivas e os espaços de cidade brancas e negras das noites de luar.
Ao contemplar estas paisagens essenciais,
Kublai refletia sobre a ordem invisível que governa as cidades, sobre as regras
a que corresponde o seu surgir e tomar forma e prosperar e adaptar-se às
estações e murchar e arruinar-se. Por vezes parecia-lhe que estava prestes a
descobrir um sistema coerente e harmonioso que estava submetido às infinitas
deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo aguentava a comparação com o do
jogo de xadrez. Talvez, em vez de matar a cabeça a evocar com o magro auxílio
das peças de marfim visões apesar de tudo destinadas ao esquecimento, bastava
jogar uma partida de acordo com as regras, e contemplar cada um dos sucessivos
estados do tabuleiro como uma das inúmeras formas que o sistema das formas
reúne e destrói.
Agora Kublai Kan já não precisava de mandar
Marco Polo em longínquas expedições: retinha-o a jogar intermináveis partidas
de xadrez. O conhecimento do império estava escondido do desenho traçado pelo
saltos angulosos do cavalo, pelas travessias diagonais que se abrem às incursões
do bispo pelo passo arrastado e circunspecto do rei e do humilde peão, pelas
alternativas inexoráveis de cada partida.
O Grão Kan tentava concentra-se no jogo: mas agora
era o porquê do jogo que lhe escapava. O fim de todas as partidas é um perder
ou ganhar: mas o quê? Qual era a verdadeira aposta? Ao xeque-mate, sob os pés
do rei derrubado pela mão do vencedor, fica um quadrado preto ou branco. À força
de desmaterializar as suas conquistas para as reduzir à essência, Kublai
chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os multiformes tesouros
do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de
madeira aplainada: o nada…»
- Calvino,
I., As Cidades Invisíveis
«Muito
teremos ganho para a ciência estética se houvermos chegado, não apenas à
perspiciência lógica, mas à certeza imediata da intuição segundo a qual a
evolução da arte se encontra ligada à duplicidade do elemento apolíneo e
do elemento dionisíaco: de modo semelhante àquele como a geração depende
da dualidade dos sexos, em luta permanente e reconciliação apenas periódica. Fomos
buscar esses nomes aos Gregos, que tornam inteligíveis as doutrinas misteriosas
e profundas da sua visão artística, fazendo-o não tanto por meio de conceitos
mas através das figuras penetrantemente claras do seu mundo de deuses. A ambas
as divindades artísticas, Apolo e Dioniso, está associada a nossa asserção de
que existe no mundo grego uma monstruosa oposição, no que diz respeito à origem
e aos objectivos, entre a arte do escultor, a apolínea, e a arte da música isenta
de imagens, como sendo a de Dioniso: ambos os impulsos, tão distintos, caminham
lado a lado, na maioria dos casos em divergência aberta um com o outro e provocando-se
para criar novos nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta
daquela oposição que a palavra comum “arte” só aparentemente supera; até que
finalmente, através de um miraculoso acto metafísico da “vontade” helénica,
eles surgem acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte,
tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática.»
-Nietzche,
F., O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo