Revejo Descartes das Meditações, seminu sobre a cama, a acordar de um pesadelo. Tinha posto em causa tudo o que lhe fora ensinado pelos seus mestres, porque já o tinham enganado, o que os sentidos lhe davam, porque também poderiam levar ao erro e, por fim, pôs em causa a sua própria existência, uma vez que certos sonhos lhe pareciam tão reais que a vida que estava a viver poderia não passar de um sonho. Um sonho induzido por uma entidade maléfica e enganadora. É neste pesadelo sem pé que Descartes deduz a sua existência, se consigo imaginar uma entidade maléfica e enganadora, é porque sou, existo.
Salto mais de três séculos e
navego na Netflix, vejo um filme/documentário sobre transexuais em Hollywood, que
veem agora representada a sua existência. O assunto interessa-me desde a
adolescência primeiro como objeto de curiosidade, depois como objecto de estudo
e agora simplesmente por interesse humano. Lembro-me de uma criança no final da
década de 70 ou início dos anos 80, que se vestia e usava o cabelo de um modo
diferente ao esperado e idealizado para o seu sexo. Recordo que os meus irmãos
mais novos brincavam com essa criança com toda a naturalidade, mas que eu
estranhava a não conformidade, imbuída no espírito da ideologia vigente. Lembro-me
do seu olhar triste e doce, e de que quando falava parecia ter outra idade. Não
recordo ao certo se inquiri a criança ou os seus pais, o pequeno ser de 6 a 8
anos ter-me-á dito directa ou indirectamente que não gostava dos seus genitais. Pensei que eu também não gostaria de acordar
um dia e ter órgãos genitais masculinos e, criança-adolescente que era,
imaginei quão incomodativo seria andar ou sentar-me com um apêndice entre as
pernas. Ficámos amigos. Um par de anos mais tarde regressei a Lisboa e perdi-lhe
o rasto.
Volto ao documentário da Netflix verifico
nas entrevistas do documentário que era quase universal o sentimento de
estranheza que os transexuais sentiam na infância e adolescência, uma
estranheza em relação a si mesmos, que imputam à ausência de representação. Primeiro
foram invisíveis à cultura visual, como se não existissem, depois foram motivo
cómico-trágico e só recentemente são representados como pessoas de pleno
direito.