| © Sara Varatojo (2021) |
Na nossa consciência colectiva, celebrar o nascimento de Jesus é celebrar a natalidade, a família, a fraternidade.
Os mitos de Natal encorajam a compaixão, o amor pelos outros, a partilha. Há expressão de afecto e generosidade na troca simbólica de presentes entre amigos e familiares. Os presentes, como dádiva, consolidam laços e destacam-se da troca impessoal de mercadoria.
Contudo o Natal é, efectivamente, uma época de consumismo à qual é (quase) impossível escapar. Seja qual for a nossa religião, todos podemos desfrutar do ritual. Todos trocamos presentes.
A família e a figura do Pai Natal legitimam essa troca de presentes.
O Pai Natal, provavelmente a figura mais conhecida no mundo (pela hegemonia dos EUA e da indústria cultural que o reproduziu), rivaliza com a figura de Jesus Cristo.
O Pai Natal está presente nos filmes, nas histórias infantis e na publicidade, que reproduzem e difundem normas sociais, a cultura, a ideologia.
A publicidade ancora-se em símbolos que valorizamos e desejamos. Acentua, com luz e música, imagens de reuniões de família, imagens de conforto. Enquadra objectos produzidos em massa como presentes ideais para alguém que nos é querido. Cria mitos.
Vivemos em sociedades que também se baseiam em mitos de individualidade e escolha, mas muitas das nossas escolhas são condicionadas por factores que não controlamos nem questionamos. Somos construídos colectivamente através da nossa cultura.
O consumo, influenciado por tradições, crenças, normas, ideologias, é cultural porque, ao consumir, estamos a reproduzir a nossa cultura.
Comprar presentes é uma expectativa social e os presentes que oferecemos conferem-nos distinção social. Comprar presentes é aderir ao Natal, é o ritual que nos envolve na economia de mercado. Participamos e reforçamos o consumismo. O Pai Natal, que distribui presentes, legitima a participação nessa economia de mercado. E ainda que a religião cristã rejeite o materialismo, consente que tradições e sentimentos sejam utilizados para obter lucro.
Estabelece-se assim o paradoxo do espírito natalício; o paradoxo entre o que assumimos valorizar no Natal e o consumo exacerbado, o materialismo e a ganância; entre o feriado religioso, o amor, a união, a dádiva e a actividade altamente lucrativa, a abundância de objectos, a posse.
A felicidade em reunir a família à volta de uma árvore cheia de presentes que brilham contrasta com a angústia e desânimo de quem não consegue pagar as contas ou de quem está só. Com a esperança despedaçada como os papéis de embrulho.