Que diria Marx no século XXI?
Propõe-se aqui que Karl Marx dos manuscritos de Paris é ainda herdeiro do romantismo, embebido do espírito (neo)platónico, da necessidade de saída ou separação da caverna, para tomar consciência do real (objectivo) e do ideal (subjectivo, imaterial). Mas, numa pirueta, este proto Marx do Karl Marx histórico, oferece não a imagem do homem isolado, auto-reflexivo a contemplar o universo dos quadros de Caspar David Friedrich, mas a visão de homem desfigurado de cabeça invertida, de um quadro de Georg Baselitz, enterrado num mundo de servidão ao trabalho que o corrói na sua natureza humana, como ser consciente, livre e criativo.
A alienação desse Marx caracteriza-se pela separação do homem-trabalhador com o produto do seu trabalho e que resulta de quatro mecanismos: (1) a divisão/ fragmentação do trabalho afastando o trabalhador do produto final, (2) a consequente perda da participação desse produto ou bem, (3) o afastamento de si mesmo como
homem livre, criador e auto-reflexivo ao resumir a sua actividade laboral a gestos autómatas e mecanizados, cujo fim único do trabalho/ actividade passa a ser a subsistência e, por último, (4) a alienação em relação ao outro e à natureza que o envolve.
Propomos um salto para a terceira década do século XXI, em plena crise provocada por uma pandemia, substituem-se a revolução industrial e as revoluções políticas e sociais do Sec. XVIII ao início do Sec. XX por uma outra revolução a que chamaremos artificial e que incorpora a revolução digital.
Colocamos a este Marx transmutado uma EPI (Equipamento de protecção individual), um fato impermeável que deixa apenas visível o movimento dos olhos por detrás da viseira protectora. O trabalhador tem uma função definida, específica, colhe sangue de uma linha arterial, memoriza os parâmetros circulatórios no monitor central, verifica os parâmetros do ventilador, depois volta-se para o corpo inerte (sedado) que está ao lado e procede de forma sistematizada à avaliação objectiva desse corpo. Por microfone transmite os dados a alguém que está noutra sala e que dá ordens para alterar os parâmetros dos vários aparelhos.
Este Marx transmutado é um trabalhador em alienação, sente-se separado do resultado final da sua actividade, que é preservar a vida e proporcionar o bem-estar físico, psicológico e social de outro ser humano, uma pessoa com nome, com família, com história, permitir que esse outro adquira capacidade para viver e recupere para voltar a estar presente em todas as suas dimensões. Poder-se-á dizer que aqui a alienação é total, há a separação do trabalhador do resultado do seu trabalho, ocorre uma despersonalização do trabalhador que se torna um autómata afastado de si e dos outros e há a despersonalização da pessoa doente, transformada num corpo inerte receptáculo de parâmetros biológicos. Este trabalhador autómata perde o sentido de si, perde o sentido dos outros e da realidade que o rodeia