Um destes dias conversava com a minha família sobre projetos de voluntariado nos países menos desenvolvidos. Falámos sobre a grande tendência das pessoas que vivem de uma forma mais confortável para criarem certas expectativas e assumirem realidades quando participam em projetos deste género. O resultado acaba por ser que estas pessoas vão para os países em desenvolvimento e levam para lá as suas crenças como sendo as corretas, criando visões muito desproporcionadas da realidade. Só a distinção entre países desenvolvidos e não desenvolvidos cria à partida uma separação depreciativa brutal, como se, quase como ditadores, pudéssemos ditar o que é ou não ser-se desenvolvido. Para além disso, o facto de se sentir esta necessidade de ir para fora, para outro país, frequentemente noutro continente, para se sentir que se ajuda alguém ou se é importante, mostra outra visão desproporcionada da vida porque perto de nós existem inúmeros projetos a precisarem de voluntários.
Duas das história reais de que falámos:
- Uma ONG a trabalhar em África decidiu angariar fundos para entregar um colchão a cada família habitante de uma pequena aldeia rural onde ainda se vive em casas tradicionais construídas com adobe, madeira e palha e o chão da casa é de terra batida. Assim fizeram. O resultado foi que as famílias, habituadas desde sempre a dormir no chão, venderam os colchões. Não ficou um só na aldeia. Se pensarmos com lógica, para quem está habituado a dormir no chão, um colchão não é de todo prioritário nem necessário, mas o dinheiro para aceder a comida sim.
- Uma história semelhante aconteceu também em África com a construção de sanitas numa zona quase sem infraestruturas e muito poucas condições higiénicas. Depois de instaladas, as sanitas foram utilizadas como bebedouros pelos habitantes que pouco acesso têm a água potável. Novamente pensando com lógica, nunca lhes passaria pela cabeça fazer as suas necessidades para cima de água potável, esta sim essencial.
Daqui voltamos à questão de — quem somos nós para dizer o que é ou não certo nestes contextos? Projetamos a nossa realidade abundante nos outros porque achamos que é o certo, mas com a escassez de recursos que existe serão mais absurdas as nossas ações do que as destes habitantes.
Como estes há mais exemplos. O desperdício alimentar que existe nos países desenvolvidos é de tal forma grave que talvez se possa dizer ser uma atitude muito pouco desenvolvida. E, na realidade que vivemos, a pandemia acentuou ainda mais esta desproporção. Apareceu um vírus que condicionou a vivência de todos os habitantes da Terra, mas são aqueles que vivem em abundância que questionam de forma mais violenta a sua existência e todas as limitações que têm sido impostas. O hábito de se ter tudo quando se quer, como se quer e onde se quer pode condicionar positiva ou negativamente a leitura dos acontecimentos. O mesmo se passa quando se vive apenas em registo de sobrevivência. A abundância e a desproporção tomaram assim conta dos nossos dias.
Margarida Bolsa, nº 12714