A cultura visual tem influência sobre o nosso conceito de sexualidade e tem o poder de, através da sua representação, normalizar certos aspetos da mesma.
Lembro-me de ver reposts de stills do filme Lolita de Adrian Lyne no Tumblr, nos primórdios do meu uso de internet, e achar muito estranha a romantização de algo que me parecia apenas imoral. No entanto, anos depois, foi-me oferecido o livro — e talvez por não conter imagens tão nitidamente criminosas ou por ser abafado pela perspetiva do autor do crime, não foi tão chocante.
A digestão destas temáticas ao longo do tempo é intencional. Os valores da sociedade mudam e a representação das narrativas muda a seu lado, mas a mensagem é passada do mesmo modo.
Em 1932, a atriz Shirley Temple contracenou com outras crianças numa série de oito curtas chamadas Baby Burlesks produzidas por Jack Hayes e dirigidas por Charles Lamont. As curtas proclamavam ser uma paródia de filmes conhecidos, utilizando como ferramenta humorística as crianças no lugar de adultos. O estatuto de criança era ainda enfatizado pelo uso de fraldas com alfinetes-de-ama desproporcionais e trocadilhos de nomes de personagens que remetiam à palavra "fralda". Em Glad Rags to Riches onde Temple faz a personagem La Bella Diaperina, uma cantora de cabaret, que tem de escolher entre um homem rico ou um homem do campo para seu parceiro.
O problema destas curtas centra-se na sexualização da criança. Ao longo destes oito filmes vemos Temple no papel de prostituta, cantora de cabaret, e dançarina que seduz soldados.
A exploração da inocência infantil da atriz é prevalente no sucessos de bilheteira que, apoiado pelo crítico Graham Greene, atraíam mais homens de meia idade do que qualquer outra fatia demográfica aos cinemas. Após a publicação desta review, o autor foi processado pela 20th Century Fox e perdeu o caso.
“The owners of a child star are like leaseholders — their property diminishes in value every year. Miss Shirley Temple’s case, though, has peculiar interest: infancy with her is a disguise, her appeal is more secret and more adult. Adult emotions of love and grief glissade across the mask of childhood, a childhood skin-deep. It is clever but it cannot last.
Her admirers — middle aged men and clergymen — respond to her dubious coquetry, to the sight of her well-shaped and desirable little body, packed with enormous vitality, only because the safety curtain of story and dialogue drops between their intelligence and their desire.”
— Graham Greene, “Wee Willie Winkie” review for the magazine Night and Day, 1937
O descartar destas situações como algo do passado é cortar o diálogo que nos permite entender como elas vieram a suceder e a oportunidade de moldar a imagem futura. A ideia de que esta aparente pedofilia era aceite sem críticas na época é provada errada pela presença de comentários como os de Graham Greene e Gilbert Sedes, que comparou o papel de Shirley como atriz ao de Mae West - um sex symbol contemporâneo à crítica- e sugeriu o estatuto criminoso dos diretores.
Conseguimos imaginar este tipo de representações e temáticas no mundo atual? A transição nos nossos valores ocidentais e a cultura do politicamente correto parece ter erradicado o passe-livre para a exploração da figura feminina infantil. Contudo, quando vi as danças e imagens promocionais dos primeiros filmes de Shirley Temple, não pude deixar de reparar nas semelhanças com o programa da TLC Toddlers and Tiaras que retrata a vida de crianças participantes em concursos de beleza. O programa teve um sucesso incrível com cerca de 1.6 milhões de espetadores por semana e esteve no ar entre 2009 e 2013. Várias críticas à moralidade do programa foram postas no radar da TLC mas apenas no último ano do programa, aliadas a um menor número de audiências, foram suficiente para cancelar o programa. A imagem trabalhada, com elementos alusivos a adultos - maquilhagem, saltos altos, roupa reveladora - e o comportamento que tenta balançar a inocência da idade com uma clara expressão de sexualidade com adultos como o público são pontos em comum com uma realidade que, pelo recolhido, não nos está tão longínqua assim.